20 de novembro de 2015

«O PINTOR ANTÓNIO SOARES» pelo Dr. Horácio Bento de Gouveia

in «Diário de Notícias» - FUNCHAL

Eu o conheci. Há muitos, há poucos anos? O calendário, na sua linguagem numérica, esfumadamente, atesta à memória, onde o tempo reside, lá no mais secreto e fundo dos refolhos que já vão mais de dezoito anos. Eu não quis crer, mas a certeza da experiência que os sentidos e a reflexão vêm enchendo a memória de segmentos psíquicos, imagens de todas as sensações que se sobrepõem consoante as idades, não iludem. Além de que a consciência não desmente, porque a marca do tempo gravou-se-me no rosto. Os sulcos mais profundos o dizem. Olho para o espelho que não é mais especioso a esta verdade física, cada vez mais remordente: o envelhecimento das faces.
Tenho pois a certeza: o tempo vive em mim, e como eco longínquo e morrente e pungente de uma voz que agoniza e identifica a pessoa, assim eu estou a ver Mestre Pintor António Soares. E a lembrança em que o artista avulta é temporal e humana. É espacio-temporal. E se não vejamos: foi por um Outubro de Lisboa, de céu escuro. As noites vinham cedo. A essa hora, nos Restauradores, sentia-se ininterrupta a imagem táctil da viração algida que fazia o corpo reagir com movimentar-se as mãos nas algibeiras, um passeio curto abaixo e acima e os olhos atentos nos vultos que perpassavam. Eram quase sete horas e meia. Estava desagradável, hostil, a noite. E quando os olhos na ilusão espectante do ser que é, e não é, de repente aparece-nos a figura gentilhomem do célebre pintor de D. Luíza de Guzmão. Alto direito, transparecia no semblante o jovem que fora, outra idade. - Meu irmão, disse o acompanhante.
E encetada uma conversa vulgar seguimos para a Rua Eugénio dos Santos. Entrámos no Restaurante. E ali, sentados a uma mesa junto da janela, enquanto se servia a refeição, António Soares foi evocando exumando do passado os seus contemporâneos, os companheiros de suas horas de apoteose de orgulho intelectual, os quais nas exposições eram presença certa como a efectuada no Palácio da Independência em 1947, e a do Secretariado Nacional da Informação em 1957 e em tantas outras. Dava ele às memorações que espontaneamente lhe acudiam, cintilhando nas palavras que expunham com o seu toque afectivo de saudade, as recordações dum pretérito mais próximo ou mais distante, mas sempre com o tom em que a sinceridade do vivido tinha o rigor dos cambiantes do espaço envolvente: e porque o tempo é inseparável do espaço falei-lhe de Salema Vaz, de seu livro de poesia, Pão do Exílio, «escrito que foi durante o desterro e seu caminho, na Ilha da Madeira, cidade do Funchal no ano de MCMXIX». O Pintor António Soares reflectiu uns segundos e disse: Bem sei, lembro-me perfeitamente, o desenho da capa é meu! Já lá vão tantos anos!

"Suavidade" - 1928
 
Salema Vaz esteva na Ilha da Madeira como oficial, quando da I Grande Guerra. Fui amigo dele. Era bom rapaz. E por associação de lembranças surgiu-me à memória um nome que não lhe devia ser desconhecido: Correia da Costa que foi jornalista e escritor. Era inteligente, afirmou, mas que era de temperamento blasé como o de muitos lisboetas.
Depois deste encontro, uma tarde, também de Outubro cinzento, o Pintor recebeu-nos em sua casa. Morava na Rua de Santo António dos Capuchos. Era uma casa antiga, do tempo em que Lisboa seria uma cidade de ambientes de sugestões para Cesário Verde. Entra-se por vetusto portão para um pátio, e escadas nos conduzem aos interiores desta casa solarenga. Salas espaçosas sucediam-se umas às outras. Em uma delas ficava a riquíssima biblioteca. Aquele estilo nobre condizia com o casal que o habitava, no silêncio de claustro: António Soares e sua mulher, senhora mui distinta.
Em sua oficina deslumbra um formoso retrato da Marquesa de Fronteira. Estou a vê-lo. E é tal o realismo da expressão que é pena que não fale. E numa atitude involuntária sentimos o desejo de nos determos, de não nos despegarmos do embevecimento, e deixando-nos permanecer, passivamente em êxtase, arroubamento absoluto. Bastaria o retrato da Marquesa de Fronteira para imortalizar o famoso Pintor.

"Retrato da Marquesa de Fronteira" - 1961
 
Mestre António Soares pertence a alguma escola? Ninguém pode fugir a uma herança. Qualquer que seja a arte á sempre uma herança. Toda a aprendizagem, implica um alicerce, um modelo um arquétipo. Eis porque Platão tinha a sua razão quando expõe a doutrina do mundo das ideias. Mestre António Soares tem raízes de cultura clássica, o que de modo algum significa que não tivesse participado do Movimento Modernista que conta com Henri Matisse como impulsor. Repudiava este as concepções clássicas dos ideais estéticos mas em seu modernismo existe alguma coisa de clássico. Ou então está errado o princípio da substancialidade que nos diz: «Toda a mudança possui algo de permanente». Mas se é certo que António Soares em Portugal compartiu do modernismo, a verdade é que ele é só ele, a sua arte desabrocha e expande-se após uma vida de trabalho isolada, semelhante à dos ascetas. Vivia para si, entregue à ânsia do mais perfeito. E conseguiu, em suas criações, a humana perfeição.
Absorvido inteiramente, obsessivamente, devotadamente à sua arte como os copistas na idade média aos originais, o pensamento tinha apenas um objectivo superior. Por isso não se perde na política. Não nascera político e sim nascera artista para as linhas e as cores. Eis um motivo forte por que António Soares foi grande na sua profissão. A sua Obra o imortalizou em Portugal e no estrangeiro.
Eu bem o conheci. Bem digo esse anoitecer de Outubro em que cadeias familiares me aproximaram de Mestre António Soares, cuja morte me sugeriu esta desataviada crónica.

Funchal, 15 de Outubro de 1978





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